quinta-feira, 2 de abril de 2015

Torta de liquidificador


Um jantar contra o desperdício de comida, aproveitando as sobras da geladeira (na minha época, seria economia doméstica, mas hoje acho que colocariam como educação ambiental).

Coloco uma tábua para mim e outra para ela, pois picar ingredientes é, atualmente, a brincadeira mais esperada de todas as noites (desenvolvimento da coordenação motora fina).

Começamos com a sobra dos legumes assados do jantar de ontem. Com a faquinha redonda e quase sem fio, ela vai picando cada um em pedaços ainda menores e, no afã de picar infinitamente, preciso lembrá-la de que não podem ficar pequenos demais – senão queima, não é, mamãe? Mostro um exemplo: devem ficar deste tamanho (reconhecimento de formas e proporções).

Juntamos um pedaço de queijo branco quase perdido e uma bandeja de salame fatiado que ia pelo mesmo destino (aprendendo diversidade e tolerância, nada de “tribos”, afinal aqui em casa a gente gosta de legumes mas não é nada macrô). Enquanto pica, vai comendo pedacinhos de brócolis e couve-flor (nem é educação alimentar, é prática sensorial hedonista: ninguém ainda contou pra ela que a gente come legumes porque são saudáveis, e a menina segue achando que são apenas gostosos).

Deixo-a preparando o recheio e vou começar a massa (trabalho em equipe). Ela está muito atenta a sua tarefa (desenvolvendo a capacidade de concentração – esses especialistas que dizem que uma criança só consegue se concentrar numa tarefa por três minutos deviam puxar uma cadeira e observá-la desfazer uma cabeça de alho, esse brinquedo de montar que os adultos usam pra temperar comida). Vou colocando tudo no liquidificador, e ela se mantém atenta a sua tarefa. Mas quando vou quebrar os ovos, titubeia: quebrar ovos é tão legal que talvez valha a pena parar de picar (aprendendo a enfrentar dilemas e tomar decisões).

Observo que o salame está difícil, e concluo que foi ambição demais praquela faca cega – o salame a mamãe vai ajudar a terminar, está bem? (aprendendo a lidar com limites e frustrações)

Vamos colocando toda a parte picada em uma travessa. Um pouquinho de sal e pimenta-do-reino. Eu coloco, mamãe! (opa, desenvolvendo a individuação, ai meus sais). Um pouquinho de cheiro verde (absorvendo as práticas das gerações anteriores – gastronomia às vezes é legal, mas a comida também é o bastão da avó). Misturamos tudo bem misturado, sem deixar cair fora da tigela (desenvolvimento da lateralidade, dentro e fora, na frente, ao lado).

Hora de colocar tudo na travessa. Primeiro um pouco de massa, depois o recheio, distribuído em colheradas, e depois o resto da massa (noções de sucessão, todo e parte). No forno você não pode mexer, ele queima (olha o tal do limite aí, gente!, e até umas noções de termodinâmica, só pra incrementar a brincadeira, vai...).

Agora precisamos esperar a torta assar. Demora? Demora! (aprendendo a esperar, claro!)

Enquanto esperamos, não custa misturar umas alfaces e picar aqueles aspargos pra uma salada. Não amassa o aspargo, que meleca! (experimentado diferentes texturas). Mas eu só vou comer torta, tá bom, mamãe?, não quero salada...

No final, comeu torta e salada, porque para incentivar uma criança a comer salada, nada melhor do que uma mãe comendo salada com prazer e alardeando que não vai sobrar nem um pedacinho...

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Aí colocam as crianças em um quarto forrado de EVA, cheio de plástico colorido e com barulhos repetitivos, e chamam isso de “ambiente seguro”, “atividade lúdica” e “brinquedo educativo”. Faz-me rir, como dizia meu pai.

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