terça-feira, 21 de junho de 2016

Privação de sentidos


Na academia, há música em toda parte, o tempo todo.

Na sala de yoga, na piscina, nos corredores, no chuveiro, na privada.

Jamais podemos estar no silêncio.

***

No vestiário, duas moças conversam:

- Quando eu me olho nesse espelho aqui, até que não me acho tão gordinha. Mas lá na sala, fazendo os exercícios, parece que estou tão gorda...

- É aquela luz.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Comida


Dias atrás fui encontrar uma amiga em um restaurante, no sábado, dia de feijoada. Minha filha foi conosco, levando sua massinha, o brinquedo da vez. Ela brincava muito concentradamente na mesa, enquanto eu lia o cardápio, perguntando o que ela gostaria de beber. No ponto em que eu repetia a pergunta pela terceira vez, já com uma voz de quem estava se aborrecendo, minha amiga, que anda muito interessada em neurociência e desenvolvimento infantil, interveio: “Ela não pode te responder, o cérebro dela está fazendo outra coisa.”

Esses dias, lendo um comentário de uma consultora de alimentação infantil sobre não misturar BLW com papinhas, lembrei dessa cena da massinha. Deixar a criança manipular a própria comida não pode ser uma distração para que alguém aproveite e encha sua boca de comida. A ideia do BLW é permitir que a criança se alimente no seu tempo, com consciência – não que ela brinque com um pedaço de brócolis enquanto lhe dão uma comida que ela não tem nem a oportunidade de reconhecer.

Quando começamos a introdução alimentar da Teresa, eu nunca tinha ouvido falar de BLW, sigla para baby led weaning, algo como uma introdução alimentar (desmame) guiada pelo bebê. Até onde eu sabia, alimentação de bebês teria de passar por papinhas. Mas fui lendo algumas coisas, conversando aqui e ali. Esse tema me absorvia muito: acho que eu pensava em como e quando começar a introdução alimentar da minha filha desde antes de ela existir...

Eu tinha uma preocupação sobre como oferecer uma comida adequada e construir hábitos alimentares saudáveis, talvez porque isso seja um assunto onipresente hoje em dia, além da conhecida culpa de mãe. Mas também tinha outra coisa: eu ficava meio apavorada com a tal fase das papinhas. Quando imaginava como seria esse momento, achava tudo muito chato e inconveniente.

Me desagradava muito a ideia de ter de fazer comidas específicas, de acomodar minhas atividades em torno de fazer e dar papinhas, de ficar carregando potinhos mundo afora. Nunca fui uma mãe de potes e sacolas. Como muitas mulheres, me sentia solitária e enclausurada após o nascimento da minha filha, e resolvi não me prender mais que o necessário: colocava algumas fraldas na bolsa, sling a tiracolo, e ia passear, tranquila com o fato de que qualquer fome e sono se resolviam com colo e peito. Mas as tais papinhas me colocariam refém das sacolas, potinhos e micro-ondas...

Também era um momento da minha vida em que as tarefas cotidianas constituíam um desafio permanente. Eu estava equilibrando o trabalho e a finalização do mestrado, e me pesava a ideia de criar mais tarefas a serem cumpridas – produzir e armazenar refeições especiais, ter um momento somente para dar comida. Além disso – agora vem a confissão realmente embaraçosa – eu tinha uma certa preguiça daquele momento de dar comida na boca.

Se por um lado isso revela meu lado sombrio de mãe egoísta e preguiçosa, por outro eu acho que tem a ver com uma outra coisa, menos sombria. Eu gosto muito de cozinhar e de comer, e considero as refeições momentos cotidianos de prazer e celebração. Eu queria simplesmente fazer comida, sentar e comer, junto com minha filha. (Talvez não fosse preguiça, mas intuição.)

Houve duas coisas fundamentais que me iluminaram e ajudaram a entender qual seria o caminho possível por aqui. Uma foi o livro Mi niño no me come, de Carlos González. Eu poderia dizer que ele mudou tudo o que eu pensava. Mas minha sensação foi, na verdade, a de que ele me revelou tudo o que eu já sabia. Entendi que a alimentação (só a alimentação?) infantil (só a infantil?) tem a ver com ética e confiança. Nós sabemos alimentar e nos alimentar. Saúde tem a ver com muitas coisas, inclusive (talvez sobretudo) com alegria, com a vida não ser um fardo. Não se obriga uma pessoa a comer (e crianças são pessoas). Também não se obriga alguém a submeter sua cozinha a preceitos e caprichos alheios. Confiança na comida, confiança na criança, confiança na vida.

A outra foram as muitas conversas que tive em um espaço dedicado ao atendimento de crianças e suas famílias, onde fiz aulas de yoga, conversei com várias mães, e participei de rodas de conversa sobre alimentação infantil. Fiz até uma oficina sobre introdução alimentar de bebês, mas mesmo nessa oficina não me recordo de termos falado nominalmente em BLW. No entanto, lembro de uma colocação que inverteu completamente minha perspectiva sobre tudo aquilo: não se trata de introdução alimentar para a criança, mas da introdução da criança no mundo da comida. De apresentar a criança ao mundo das refeições familiares.

Nesse momento, descobri que era possível, saudável e sensato precisamente aquilo que eu tanto almejava: sentar e comer com minha filha.

De modo que parei de procurar guias alimentares e ignorei silenciosamente as orientações de preparo e balanceamento de papinhas feitas pela pediatra na consulta dos seis meses. Em vez disso, continuei preparando minhas refeições e comendo-as junto à minha filha. Ela ficava ao meu lado, sentada em cima da mesa, em um “bumbo” (uma espécie de cadeirinha de bebê que colocávamos mesmo sobre a mesa, pois em casa temos um balcão com bancos altos, e não uma mesa com cadeiras baixas e “seguras”). Eu fazia comida “normal”, colocava algumas coisas em um prato para ela, e deixava-a livre para manipular o que a interessasse, como quisesse. Sim, sim, havia muita sujeira... No meio dessa bagunça, às vezes alguma coisa acabava sendo comida. Mas isso não era objetivo, era parte.

A coisa toda causava um bocado de estranhamento. Em geral, as pessoas manifestavam a preocupação de que ela estivesse começando a comer “muito tarde”, e de que pudesse engasgar. Bem, sobre “adiar” a introdução alimentar, eu estava bastante segura, pois atualmente mesmo as orientações mais ortodoxas são de que bebês que só tomam leite materno comecem a receber alimentação complementar a partir dos seis meses – as orientações para começar antes disso não são ortodoxas, são francamente ultrapassadas. Já sobre engasgar... Não sei se alguma mãe ou pai não se preocupa com isso, mas esse é justamente o benefício de não iniciar a alimentação complementar antes da hora! Eu ficava atenta, claro, mas só coloquei comida à disposição da minha filha quando ela já se sentava e se interessava em comer. Oferecia os alimentos em pedaços grandes, não colocava comida na boca dela, não dava coisas pequenas e redondas, nem muito duras como castanhas... Ela nunca engasgou. Nosso medo pode ser uma intuição de segurança, e acho que precisamos ouvi-lo. Se há medo, é preciso recuar e avaliar. Mas o medo também pode ser uma vida sem intuição, sem confiança, alienada, e precisamos nos fortalecer – com troca, com apoio, com informação, com terapia, o que estiver ao alcance.

A preocupação de que a alimentação complementar começou “tarde” se articula com o receio de que a criança esteja “comendo pouco”, de que não esteja suficientemente nutrida. Você coloca a comida na frente dela e ela brinca, em vez de comer. Querem vê-la raspar o prato... Não vou entrar em discursos sobre o quanto a indústria do alimento infantil sabotou a nossa força e a nossa confiança (aliás, a indústria de um modo geral nos convenceu da necessidade de um tanto de tralha para criar filhos...). Mas, no meu caso em particular, eu confiava verdadeiramente na amamentação. Posso dizer que até um ano de idade, seguramente, eu imputava a nutrição da minha filha ao meu leite. As outras comidas eram para treinar, para aprender a comer, para participar do universo social que a comida representa, para conhecer cores e sabores. Para sair da mãe e entrar no mundo. Mas, se não comer, o leite dá conta. Pelo histórico de doenças da Teresa, ou eu tive muita sorte, ou não estava muito errada em pensar assim.

Talvez o mais bonito de tudo isso seja que, se inicialmente eu relutei em abraçar as mudanças que viriam com a obrigação de cozinhar para uma criança, e parecia que as papinhas virariam minha vida do avesso, a verdade é que a decisão de oferecer à minha filha a mesma comida que estivéssemos comendo mudou enormemente o jeito como comemos em casa, e meu jeito de cozinhar. Comecei a pesquisar formas de oferecer uma comida adequada e saudável, mas em vez de me encantar com os blogs de antroposofia e macrobiótica, fiquei mesmo naqueles que me ensinaram a fazer pão e manteiga em casa. E risoto na panela de pressão. E a preparar legumes de vários jeitos, para a criança que só teve dentes com um ano e até hoje não se interessa por salada de folhas. Mas come escarola refogada com macarrão. E adora brigadeiro. E anda rejeitando pizza, para desespero dos pais que não querem entrar na cozinha no domingo à noite.

É que não era a mãe fazendo comida de bebê, era eu inteira, fazendo comida boa para todos nós.

Porque não são só as mãos que moldam a massinha, é o cérebro também, é o corpo todo. Quando a gente abraça, é o corpo todo que abraça. Quando a gente pensa, é o corpo todo que pensa. Quando a gente come, é o corpo todo que come. Ou deveria ser. Ou poderia ser.

Ou, pelo menos, podemos ter isso no horizonte.